Simbolismo histórico da flor lótus

Flor que se poderia dizer a primeira e que desabrocha sobre águas geralmente estagnadas e turvas com uma perfeição tão sensual e soberana que é fácil imaginá-la, in illo tempore, como a primeira aparição da vida sobre a imensidade neutra das águas primordiais.

Assim aparece na iconografia egípcia — como a primeiríssima; depois disso o demiurgo e o Sol brotam de seu coração aberto.

A flor do lótus é pois, antes de tudo, o sexo, a valva arquetípica, garantia da perpetuação dos nascimentos e dos renascimentos.

Do Mediterrâneo à Índia e à China, sua importância simbólica, de manifestações tão variadas, se deriva, tanto no plano profano como no sagrado, desta imagem fundamental.

O "lótus azul", que era considerado o mais sagrado no pais dos Faraós, "oferecia um perfume de vida divina: sobre os muros dos hipogeus tebanos, ver-se-á a assembleia familiar dos vivos e dos mortos aspirar gravemente a flor violácea, num gesto em que se misturam o deleite e a magia do renascimento".

A literatura galante chinesa — que alia, como se sabe, o gosto da metáfora a um profundo realismo — emprega a palavra lótus para designar expressamente a vulva, e o título mais lisonjeiro que se pode dar a uma cortesã é o de Lótus de Ouro.

Entretanto, as espiritualidades indianas ou budistas interpretarão num sentido moral a cor imaculada do lótus, abrindo-se intacta por cima da nódoa do mundo. "Como um lótus puro, admirável, não é de modo algum maculado pelas águas, eu não sou maculada pelo mundo".

Tcheu Tuen-yi, numa conotação que parece bissexual, e portanto totalizadora, retoma a noção de pureza, acrescenta as de sobriedade e retidão e faz da flor o emblema do sábio.

De modo mais geral, como a ideia de pureza é constante, acrescentam-se ainda: a firmeza (a rigidez da haste), a prosperidade (a opulência da planta), a posteridade numerosa (abundância de grãos), a harmonia conjugal (duas flores crescem sobre a mesma haste), o tempo passado, presente e futuro (encontram-se simultaneamente os três estados da planta: botão, flor desabrochada, grãos).

Os grandes livros da Índia fazem do lótus, que surge da obscuridade e desabrocha em plena luz, o símbolo do crescimento espiritual.

Sendo as águas a imagem da indistinção primordial, o lótus representa a manifestação que emana delas, que se abre na sua superfície, como o Ovo do mundo.
O botão fechado é aliás o equivalente exato desse ovo, cuja ruptura corresponde à abertura da flor: é a realização das possibilidades contidas no germe inicial, a das possibilidades do ser, porque o coração é também um lótus fechado.

Porque o lótus tradicional tem oito pétalas, assim como o espaço tem oito direções, ele é ainda o símbolo da harmonia cósmica. É utilizado nesse sentido no traçado de numerosas mandala e yantra.

A iconografia hindu representa Vishnu dormindo na superfície do oceano causal. Do umbigo de Vishnu emerge um lótus cuja corola desabrochada contém Brahma, princípio da tendência expansiva (rajas).

É preciso aliás acrescentar que o botão de lótus, como origem da manifestação, é também um símbolo egípcio. Atributo de Vishnu, o lótus é substituído na iconografia kampucheana (cambojana) pela Terra, que ele representa enquanto aspecto passivo da manifestação.

Para sermos precisos, a iconografia da Índia distingue o lótus rosa (ou padma), que acabamos de considerar, emblema solar e símbolo também de prosperidade, do lótus azul (ou utpala), emblema lunar e Shivaíta.

Do ponto de vista budista, o lótus — sobre o qual está sentado como num trono Xáquia Muni — é a natureza de Buda, não afetada pelo ambiente lamacento do samsara. A gema no lótus (mani padme) é o universo receptacular do Dfiarma, é a ilusão formal, ou a Maya, de onde emerge o Nirvana.

Por outro lado, o Buda, no centro do lótus (de oito pétalas), estabelece-se na parte central da roda (de oito raios), da qual o padma é o equivalente: assim se exprime sua função de Chakravarti, tal como é possível interpretá-la em Bayon d'Angkor-Thom.

O centro do lótus é, em outras circunstâncias, ocupado pelo monte Meru, eixo do mundo. Na mitologia Vishnuísta, é a própria haste do lótus que se identifica com este eixo, o qual é, como se sabe, o falo, e reforça a hipótese de um simbolismo bissexual ou sexualmente totalizador.

No simbolismo do Tantra, os sete centros sutis do ser que o eixo vertebral, o eixo de sushumna, atravessa são figurados como lótus de 4, 6, 10, 12, 16, 20 e 1.000 pétalas.

O lótus de mil pétalas significa a totalidade da revelação. Numa interpretação mais banalizante, a literatura japonesa faz amiúde desta flor, tão pura no meio de águas sujas, uma imagem da moralidade, que pode permanecer pura e intacta no meio da sociedade e de suas vilanias, sem que seja preciso que se retire para um lugar deserto.

Parece enfim que o lótus tenha apresentado, no Extremo Oriente, uma significação alquímica.

Com efeito, várias organizações chinesas tomaram o desenho do lótus (branco) como símbolo comercial, o mesmo ocorrendo com uma comunidade amidista fundada no séc. IV no monte Lu e uma importante sociedade secreta taoista, à qual o simbolismo budista talvez sirva de cobertura, mas podendo também referir-se ao simbolismo da alquimia interna, porque aflor de ouro é branca.

 

 

Fonte: Livro Dicionário dos Símbolos, por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, editora J.O.


Página atualizada na Agência EVEF em 29/03/2022 por Everton Ferretti